Canguru: um prato tradicional da Austrália
- Gabriela Tavares Sampaio
- 14 de set.
- 7 min de leitura

A carne de canguru destaca-se como alternativa sustentável às carnes tradicionais, por seu alto valor nutricional e baixo impacto ambiental. No entanto, seu consumo é permeado por controvérsias éticas, sanitárias e culturais.
Carne de canguru: contexto produtivo, nutricional e ambiental:
O canguru é um marsupial nativo e símbolo da Austrália, onde ocorre a única produção regulamentada de sua carne, obtida por meio da caça controlada de populações selvagens abundantes. Além de apresentar elevado valor nutricional e baixo teor de gordura, a carne de canguru é considerada ambientalmente sustentável, pois esses animais emitem mínimas quantidades de metano e exercem menor pressão sobre os recursos naturais. Apesar disso, seu consumo desperta debates culturais, éticos e sanitários.
Entre Sustentabilidade e Nutrição:

O consumo de carne de canguru tem sido objeto de crescente interesse acadêmico e social, especialmente na Austrália e em países que buscam alternativas sustentáveis à carne bovina. A carne de canguru, obtida predominantemente de animais selvagens por meio de caça regulamentada, apresenta atributos nutricionais e ecológicos que a posicionam como uma alternativa promissora frente às carnes tradicionais.
Perfil Nutricional: Densidade de Nutrientes e Potencial Funcional:

O canguru é um marsupial nativo e símbolo da Austrália, onde ocorre a única produção regulamentada de sua carne, obtida por meio da caça controlada de populações selvagens abundantes. Diversos estudos destacam o elevado valor nutricional da carne de canguru. Trata-se de uma carne magra que, de acordo com o Departamento de Agricultura, Pesca e Florestas (DAFF), apresenta teor de gordura inferior a 2,6%, além de ser rica em proteínas de alto valor biológico (cerca de 23%), ferro heme, zinco e ácidos graxos insaturados, em especial o ácido linoleico conjugado (CLA), conhecido por suas propriedades anticarcinogênicas e hipolipemiantes. Essas características tornam a carne de canguru atraente para dietas voltadas à prevenção de doenças cardiovasculares, obesidade e síndromes metabólicas, segundo a revista Conservation Letters em 2008, que discute o potencial de substituir parte da produção pecuária tradicional pelo uso sustentável de fauna nativa (como os cangurus), visando reduzir as emissões de metano e de gases de efeito estufa.
Sustentabilidade Ambiental: menor pegada ecológica e emissões reduzidas

O potencial ecológico da carne de canguru foi destacado no relatório Garnaut Climate Change Review, um relatório encomendado pelo governo australiano em 2008, conduzido pelo economista Ross Garnaut, que sugeriu a inclusão da carne de canguru na dieta australiana como forma de mitigar as emissões de gases de efeito estufa. Isto se deve, pois ao contrário dos ruminantes domésticos, como por exemplo bovinos, os cangurus produzem quantidades mínimas de metano entérico e exercem menor pressão sobre o solo e os recursos hídricos. Estimativas do relatório indicaram que uma mudança parcial (aproximadamente 20%) do consumo de carne bovina para carne de canguru poderia reduzir em até 2,3% ao ano as emissões totais de Gases de Efeito Estufa na Austrália.
Segurança Alimentar: controle sanitária e desafios do abate silvestre

Embora a carne de canguru seja regulamentada por normas rigorosas de higiene e segurança alimentar por meio do Austrialian Export Meat Inspection System (AEMIS), controlado pelo DAFF, seu consumo ainda levanta preocupações sanitárias, uma vez que os animais são caçados na natureza. Um estudo de qualidade microbiológica das carcaças de canguru processadas na Austrália do Sul (2014) avaliou microrganismos indicadores de higiene e segurança em carcaças de canguru e um Estudo de riscos de infecção pelo consumo de carne vermelha crua, carne de canguru e vísceras na Austrália (2015) analisou quantitativamente o risco de contaminação no consumo cru/malcozido. Os dois relataram a possível presença de patógenos como Salmonella spp. e E. coli, sobretudo quando o manejo e a refrigeração não são adequados. No entanto, a incidência de surtos alimentares documentados é baixa, e há fiscalização por órgãos oficiais australianos, como o DAFF, em conjunto com agências estaduais de meio ambiente e de manejo da vida selvagem, que supervisionam tanto o cumprimento das quotas de abate quanto os padrões de bem-estar animal, garantindo a segurança do produto final.
Questões Éticas: bem-estar animal e controle populacional

A caça de cangurus, regulada por quotas anuais de abate estabelecidas por estados australianos, visa manter o equilíbrio populacional e evitar danos ecológicos. Cada estado australiano define suas próprias cotas anuais de abate — geralmente entre 10% e 20% da população estimada de cangurus — como estratégia para garantir sustentabilidade e evitar superexploração. No entanto, a prática gera controvérsia ética. Críticas se concentram nas condições de abate em campo: o abate ocorre majoritariamente durante a noite, por atiradores licenciados, usando armas de fogo especificadas pelo código de prática, que orienta o tiro na cabeça para garantir morte rápida e mínima dor.Após o disparo, os cangurus abatidos são eviscerados no campo e transportados, ainda com pele, diretamente para unidades de processamento ou câmaras resfriadas. Há críticas no sofrimento dos animais e no destino dos filhotes (joeys), que muitas vezes são sacrificados após a morte da mãe. Organizações de defesa dos animais apontam lacunas nos métodos de abate e sugerem melhorias na regulamentação, como entidades como RSPCA (Sociedade Real para a Prevenção da Crueldade contra os Animais) Austrália, Voiceless, Wildlife Victoria e outras têm apontado diversas falhas no sistema atual de manejo e abate regulamentado de cangurus. Entre as principais lacunas identificadas e as sugestões de melhorias estão:Falta de fiscalização no local do abate, uma vez que ocorre sem monitoramento no ponto de morte (“point of kill”), não há garantias de que o animal foi abatido humanamente. Métodos de eutanásia de filhotes ineficazes: os códigos permitem a morte de filhotes por trauma contundente ou decapitação, mas na prática, muitos não são encontrados ou assistidos adequadamente, e ficam sujeitos à fome ou predação. A RSPCA defende que uma comissão nacional revise cientificamente as práticas, avalie os riscos ecológicos e de bem-estar, e proponha políticas baseadas no princípio da precaução.
Barreiras Culturais: Resistência local e aceitação internacional

Apesar de sua disponibilidade na Austrália e benefícios nutricionais, ambientais e econômicos, a carne de canguru encontra resistência cultural, especialmente entre os próprios australianos. O canguru é um símbolo nacional e, por isso, seu consumo gera desconforto emocional e moral em parte da população. O principal deles é o forte valor simbólico do canguru como símbolo nacional da Austrália — muitos australianos sentem desconforto moral, comparando o ato a "comer Bambi", ou ressaltando que o animal é “lindo demais para servir no prato”. Uma pesquisa da UNSW (Universidade de Nova Gales do Sul) indicou que 58% dos australianos já provaram carne de canguru, mas apenas 4,7% a consomem mensalmente — e a faixa de consumo varia entre estados, de 21% na Austrália do Sul a apenas 9% em Queensland. Pesquisas mostram que turistas e consumidores estrangeiros tendem a aceitar melhor o produto, enquanto no mercado interno sua penetração ainda é limitada. A percepção pública está em transformação, mas a adesão cultural plena ainda é um desafio.
Considerações Finais: Caminhos para uma produção ética e sustentável
O consumo de carne de canguru apresenta benefícios nutricionais e ecológicos, sendo uma alternativa à carne vermelha convencional por seu baixo teor de gordura, alto valor proteico e menor emissão de gases de efeito estufa. Seu uso pode apoiar políticas públicas voltadas à segurança alimentar, saúde nutricional e mitigação das mudanças climáticas. Apesar de sua disponibilidade e regulamentação, o consumo interno na Austrália é limitado. O canguru é um símbolo nacional, o que gera desconforto moral em parte da população, e a textura e sabor característicos (“gamey”) influenciam a aceitação. Apenas uma pequena parcela dos australianos consome carne de canguru regularmente, embora muitos já tenham experimentado. Em contraste, a exportação internacional é significativa, com mercados na União Europeia, Japão e Estados Unidos, onde a carne é percebida como um produto exótico e sustentável. Assim, o consumo global é maior que o interno, consolidando a carne de canguru como um recurso alimentar estratégico e de alto valor agregado.
A Austrália é praticamente o único país que produz carne de canguru em escala comercial, com colheita regulamentada e quotas anuais de abate variando por estado, geralmente entre 10–20% da população estimada. De acordo com os relatórios anuais do Departamento de Meio Ambiente, Energia e Mudanças Climáticas da Austrália (DCCEEW) e de órgãos estaduais responsáveis pela gestão da vida selvagem, entre 2010 e 2023, aproximadamente 1,1 a 1,7 milhões de cangurus foram abatidos anualmente, embora a maioria dos estados não utilize a cota total. Essas práticas visam manter o equilíbrio populacional e evitar impactos ecológicos. Os cortes mais consumidos incluem filés, bifes e carne moída, ideais para grelhados rápidos, cozidos lentos e preparações gastronômicas especiais. Devido ao baixo teor de gordura, a carne é frequentemente marinada ou temperada para realçar sabor e maciez. O restante da carcaça, após remoção dos cortes primários, é utilizado na produção de alimentos para animais de estimação ou em processos industriais. Técnicas de desossa mecânica permitem recuperar aproximadamente 50% da proteína remanescente, promovendo aproveitamento integral e sustentabilidade da cadeia produtiva.
A caça de cangurus é regulamentada por quotas anuais e o abate deve seguir o Código Nacional de Prática para Disparo Humanitário, com tiro na cabeça visando morte rápida. Entretanto, lacunas éticas persistem, como a mortalidade e sofrimento de filhotes, erros de tiro e condições adversas de abate. Organizações de defesa dos animais sugerem melhorias, incluindo revisão independente do código, treinamento e fiscalização rigorosa de caçadores, restrição de abate de fêmeas para proteger filhotes e estratégias de manejo nacional integradas entre governo, comunidades e setor produtivo.
Em síntese, a carne de canguru representa uma alternativa nutricionalmente vantajosa e ecologicamente sustentável, com potencial para contribuir para dietas saudáveis e políticas públicas de mitigação de mudanças climáticas. Contudo, seu sucesso depende de superar barreiras culturais e éticas, garantir rigor sanitário e segurança alimentar, implementar práticas de abate humanitário e fiscalização robusta, e promover aproveitamento integral do animal e conscientização do consumidor. Com medidas adequadas, a indústria de carne de canguru pode se consolidar como uma opção ética, sustentável e economicamente viável, atendendo tanto ao mercado interno quanto à crescente demanda internacional.
E você, já tinha pensado na carne de canguru como uma alternativa alimentar e teria coragem de experimentar?
Com tantos desafios ambientais e nutricionais no mundo, será que é hora de abrirmos espaço para alternativas não convencionais? O tema envolve nutrição, meio ambiente, ética e cultura e nos convida a refletir sobre o futuro da alimentação.
Vale a pena conhecer mais antes de formar uma opinião.
Referências bibliográficas:
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GARNAUT, R. The Garnaut Climate Change Review. Canberra: Commonwealth of Australia, 2008.
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