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FUGU: a perigosa e apetitosa arte da culinária japonesa

  • Maria Fernanda Felipe de Carvalho
  • 17 de ago.
  • 5 min de leitura
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Os peixes das famílias Tetrodontidae e Diodontidae são popularmente conhecidos como baiacus no Brasil. No Japão, são chamados de fugu, e representam mais do que uma refeição, mas também uma tradição antiga com grande valor econômico, cultural e simbólico. Entretanto, esta experiência gastronômica é marcada por dualidades — um único erro em sua preparação pode ser fatal, mas quando feito corretamente, resulta em uma textura única e sabor sútil, sendo, portanto, associado à coragem e bravura culinária. Vamos saber o motivo?


Estes peixes são famosos e fáceis de identificar devido à capacidade de inflar o corpo através da ingestão de ar ou água, que ficam armazenados sob pressão no estômago ou em uma invaginação do órgão. O motivo destes peixes inflarem é que, ao aumentarem seu volume, não são engolidos por predadores. Apesar de muitas vezes ser considerado “fofo” e inofensivo, seu consumo pode ser muito perigoso. Isso devido à presença de tetrodotoxina, uma neurotoxina encontrada no fugu, principalmente em maiores concentrações nas gônadas, fígado, baço e pele.


O fugu não produz a toxina, mas armazena em alguns órgãos e usa como defesa contra predadores. Ela é adquirida por meio da alimentação ou por bactérias simbióticas presentes na pele e no trato digestivo desses peixes. Mas o que é e por que esta tetradoxina é tão perigosa?!


Tetrodotoxina


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A tetrodotoxina é uma toxina termoestável, ou seja, não é afetada pela cocção, lavagem ou congelamento do peixe. Esta toxina atua bloqueando os canais de sódio na junção neuromuscular, causando impossibilidade de condução do impulso nervoso para os músculos, o que pode levar à paralisia e, em casos graves, à morte de quem a ingere.


As manifestações surgem em poucas horas após o consumo, iniciando geralmente com formigamentos ao redor da boca e nas extremidades. Com a progressão do quadro, é comum observar fraqueza muscular, dores musculares, tonturas, alterações na fala, dificuldade de coordenação e de locomoção, além de distúrbios visuais e outros sintomas neurológicos. Em casos mais graves, podem surgir convulsões, dificuldade respiratória e até parada cardiorrespiratória. No trato gastrointestinal, os sinais mais frequentes incluem náuseas, vômitos, dores abdominais e episódios de diarreia. A evolução para óbito pode ocorrer devido à paralisia dos músculos respiratórios, à depressão do sistema respiratório e à falência circulatória.


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Uma pequena dose desta toxina pode ser letal, então deve-se ter muito cuidado ao consumir. Não há antídoto disponível, e não existe tratamento específico para os envenenamentos causados pela ingestão de fugu. Algumas medidas podem ser indicadas, como a lavagem gástrica nas primeiras horas após a ingestão. Posteriormente, o tratamento é de suporte e assistência ventilatória mecânica, mas o índice de óbito ainda é alto. Apesar de todo esse risco, o fugu continua sendo consumido no Japão devido ao seu grande valor cultural e gastronômico. Ele é considerado uma iguaria de prestígio, e o perigo envolvido em seu preparo e consumo atrai muitos apreciadores da culinária japonesa. Seu sabor delicado e a textura suave tornam a experiência ainda mais valorizada. Além disso, sua sazonalidade — especialmente no inverno — o torna um prato especial, frequentemente servido em ocasiões festivas, cerimônias tradicionais e refeições refinadas. Para muitos, comer fugu é não só uma escolha gastronômica, mas também simbólica, associada à coragem e à tradição do país.


Consumo


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A preparação do fugu é considerada uma verdadeira arte e é rigorosamente regulamentada pelas autoridades japonesas. Apenas chefs licenciados, que passaram por anos de treinamento teórico e prático, estão autorizados a preparar e servir o peixe. O processo envolve o aprendizado anatômico detalhado do peixe, identificação e remoção precisa dos órgãos tóxicos sem contaminar a parte comestível, técnicas de filetagem e segurança alimentar. Ao final da formação, o chef precisa ser aprovado em um exame que testa tanto o conhecimento teórico quanto a prática.


No Japão, a lei proíbe que restaurantes sem licença comercializem fugu. Além disso, embora o preparo doméstico não seja ilegal, ele é fortemente desaconselhado devido ao alto risco de erro. Já no Brasil, não existe uma legislação específica que regulamente o preparo ou exija licença para manipulação do baiacu, mas órgãos como o Ministério da Saúde e a Anvisa alertam sobre os riscos de envenenamento. A ausência de uma regulamentação semelhante à japonesa pode estar relacionada ao fato de que o consumo desse peixe não faz parte da cultura alimentar brasileira, sendo raro e geralmente restrito a contextos informais ou acidentais.


O fugu pode ser preparado e consumido de várias maneiras, enfatizando a textura e o sabor do peixe: grelhado, frito, sashimi (carne crua em fatias finas), hirezake (saquê quente aromatizado com as barbatanas), Chirinabe (cozido em caldo quente), Fugu karaage (empanado e frito), hotpot (fatias de fugu são cozidas com vegetais e tofu em um caldo leve).


Um fato curioso é que o consumo de fugu é proibido ao imperador do Japão, mesmo quando preparado por chefs altamente qualificados. Isso acontece por uma questão de segurança: como ele é uma figura de extrema importância nacional, qualquer risco deve ser evitado. Essa proibição reforça a ideia de que o fugu, apesar de valorizado, é também um alimento cercado de cuidados.


Para aumentar a segurança no consumo, existem atualmente criadouros de fugu em cativeiro, onde os peixes recebem uma alimentação controlada, sem os microrganismos que produzem a toxina. Isso faz com que eles não desenvolvam tetrodotoxina, o que torna o consumo mais seguro. Mesmo assim, o preparo ainda exige cuidado, treinamento e licenciamento, como forma de manter o respeito à tradição e garantir a segurança de quem consome.


Nutricionalmente, a carne do fugu é considerada uma opção magra, com baixo teor de gordura e rica em proteínas de alto valor biológico. Também se destaca por fornecer vitaminas do complexo B (B1, B2, B6 e B12), além de minerais como ferro, fósforo e potássio, e pela presença de taurina, substância que contribui para a saúde neuromuscular e cardiovascular.


O fugu é muito mais do que um peixe: é um símbolo cultural complexo, que une arte, ciência, risco e tradição. Seja como uma iguaria de luxo ou uma prova de bravura, seu fascínio permanece vivo, atraindo tanto os locais quanto os turistas curiosos e dispostos a experimentar uma das mais intrigantes e perigosas experiências gastronômicas do mundo.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


COSTA, E. A.; BRAGA, M. C. R.; SANTANA, M. F. M.; SANTOS, M. B. C. Envenenamento fatal por baiacu (Tetraodontidae): relato de um caso em criança. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, v. 43, n. 1, p. 104–105, fev. 2010. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0037-86822010000100020.

HADDAD JR, V.; TAKEHARA, E. T.; RODRIGUES, D. S.; LASTÓRIA, J. C. Envenenamento por baiacus (peixes-bola): revisão sobre o tema. Diagnóstico e Tratamento, São Paulo, v. 9, p. 183-185, 2004.

TAO, Ning-ping; WANG, Li-ya; GONG, Xi; LIU, Yuan. Comparação da composição nutricional dos músculos de baiacu de criação entre Fugu obscurus, Fugu flavidus e Fugu rubripes. Journal of Food Composition and Analysis, v. 28, n. 1, p. 40–45, nov. 2012. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.jfca.2012.06.004.

TEXAS REAL FOOD. Fugu preparation: mastering the risky delicacy of Japan’s pufferfish. [S. l.]: Texas Real Food, 2023. Disponível em: https://discover.texasrealfood.com/strange-eats/fugu-preparation-mastering-the-risky-delicacy-of-japans-pufferfish.

 
 
 

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